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O Horizonte no Chão
José Almeida Pereira

A horizontalidade é o arranjo que Cristina Regadas elegeu para a exposição que intitulou: Frame of Reference (Campo Contra-campo). A artista dedica-se à fotografia.
Dedicar-se não quer dizer que fotografa somente. Ela percebeu que na fotografia há uma ligação ao tempo e ao espaço da realidade que ultrapassa o mero índice.

As fotografias nas mãos da Cristina são remanescentes de viagens cosmológicas. São transposições da luz que provêm das explosões celestes em direcção aos presentes. A artista encontra imagens que depois procura para pensar o seu tempo na vida. Ela sabe que o passado é coetâneo de si. O passado está sempre imanente. Ela testa e comprova que não há morte no cosmos.

Mas desta vez a Cristina estendeu os seus arquétipos à alquimia da cor dos pigmentos mais artesanais. Manteve o encontro com películas fotográficas que lhe chegaram por correio, as quais fez coabitar com fotografias do próprio arquivo*. As imagens são maioritariamente captações de formações geológicas. Vêm não se sabe bem de onde, são desertos, depressões áridas, montanhas de grandes altitudes, neve, areia, rochas, vegetação, água.

E é a partir destes referentes que decide criar pinturas que são tingimentos, servindo-se de várias plantas e pigmentos naturais, ex: beterraba, açafrão, romã, funcho, couve-roxa, feto.
Com eles impregna as cores que libertam na trama dos tecidos de algodão e linho. A par vai pintando a guache sobre papeis. Estas são pinturas abstractas com recortes rectilíneos, formando polígonos que delimitam manchas e gradações gestuais. No chão de cota superior do "Sol Pele" todos estes elementos se vão estendendendo para criar proximidades em que a cor é o principal aglutinante.
O chão é de uma antiga fábrica com as marcas do seu tempo, as fendas do seu desgaste as silhuetas dos objectos que conteve. Estas texturas estão em diálogo permanente com o horizonte e as estratificações das paisagens fotográficas, com as engelhas dos tecidos e as manchas dos guaches.

Há humanos que surgem em poucas das fotografias - são contempladores. Há um auto-retrato da artista quando criança, num Portugal dos pequeninos junto a uma escultura de um elefante que encontra reflexo na fotografia de dois outros elefantes de um outro lado do mundo. Um plano da mão da Cristina é um auto-retrato do presente. E é com a mão que a artista insiste que o tacto é um primordial da existência. O toque e o calor dos corpos estão em destaque numa das projecções em filme - grandes planos do pêlo de um animal que vira paisagem e ícone do afecto simultaneamente.

Mas porque não lhe chega a bidimensionalidade das pinturas, das fotografias e dos tecidos, ela introduz plantas e minerais na exposição. Os minerais são cristais que sublinham uma transcendência pelo diálogo que têm com a fotografia. As estruturas geométricas destes minerais são o condimento que nos conduz ao latente. Reclamam a transcendência, essa que os místicos defendem com unhas e dentes, e que todos alguma vez na vida verificamos.
A Cristina insiste e sublinha que a realidade nos dá elementos bastantes para reconhecermos que o enigma da nossa passagem é apreendido quando nos desarmamos do seu entendimento.

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*Este arquivo é composto, para além de imagens encontradas de autores anónimos, por uma coluna vertebral formada por fotografias captadas pelos seus familiares (pais e avós) e por si.